CASO CLÍNICO: ODONTOLOGIA RESTAURADORA

Para o texto desta quinzena, reuni uma pequena sequência de fotos de um caso clínico realizado há anos, acreditando que uma série de fatores poderiam ser abordados. Já adianto que esta é uma situação extremamente comum no dia a dia de qualquer Cirurgião-Dentista. Não é belo esteticamente, tendo sido feito com apenas 2 cores de resina composta e sem uso de corantes. Honestamente: não era o foco. Soa estranho, inclusive, que alguém queira compartilhar um caso que não tenha atingido grau máximo de beleza. Afinal, grande parte do que se mostra hoje em Odontologia Restauradora visa enaltecer apenas a estética de alta performance.

Gostaria de começar falando sobre o Isolamento Absoluto (IA). O uso de Isolamento Absoluto foi foco de debate nas redes sociais há pouco tempo. Alguns defendem que seja utilizado em todos os procedimentos adesivos, sem exceção. Dizem, inclusive, que dente que não pode ser isolado deve ser condenado. Caso o profissional não consiga isolar determinado elemento que está longe da necessidade de extração, a falha seria da técnica deste profissional. Outros não gostam de utilizá-lo. Julgam desconfortável para o paciente, demorado/trabalhoso e, até mesmo, oneroso. Mas existe um terceiro grupo, que o qual concordo em maior parte: aquele que compreende sua importância, incentiva seu uso, porém sabe que alguns casos se tornam dificultosos quando se tenta “enfeitar” a situação. Seriam casos de cimentação de certos laminados e coroas, realização de facetas diretas, restaurações Classe V, pequenas restaurações incisais e pequenas restaurações Classe I de pré-molares superiores em pacientes cooperativos. Apesar de também serem passíveis de realização sob IA, estes procedimentos costumeiramente podem ser realizados de maneira tranquila sob isolamento relativo.

Figura 1

Agora, vamos falar um pouco sobre remoção de tecido cariado. As evidências científicas deixam claro que se deve remover apenas a dentina infectada, principalmente em cavidades profundas. Esta dentina é extremamente amolecida e não causa dor ao paciente durante sua remoção. Logo abaixo dela, encontramos a dentina cariada afetada. Esta possui consistência mais firme e é removida em lascas (Fig. 1).

Figura 2

Por maior que seja nossa vontade de removê-la, sua preservação em cavidades profundas é importantíssima. Do contrário, uma exposição pulpar acidental pode ocorrer, aumentando a probabilidade de ser necessária intervenção endodôntica posterior. A remoção completa da dentina cariada (inclusive a afetada) é importante apenas nas bordas da cavidade, próximo ao esmalte (Fig. 2). Estas regiões não trazem risco de exposição pulpar, podendo, assim, se beneficiar de resistência de união adesiva superior e proporcionar selamento mais eficiente. É claro que quando digo “expor a polpa”, me refiro a uma exposição macroscópica, exposição clínica do tecido pulpar. Porém, cavidades mais profundas como a deste caso expõem a polpa microscopicamente. A contaminação desta dentina aparenta-se de baixa relevância clínica aos olhos dos mais desatentos, mas fisiologicamente pode ser determinante para o sucesso do tratamento.

Provavelmente, alguns Endodontistas vão torcer o nariz, dizendo que eu deveria remover completamente toda a dentina desmineralizada. E, caso houvesse exposição pulpar durante essa remoção, que se prossiga com a pulpotomia ou, até mesmo, com a pulpectomia. O famoso “vai dar canal”, ou o “por isso amo resina!”. Entendo esta reação. Afinal, sei o quão comum é tais especialistas atenderem pacientes submetidos a restaurações como está já com necessidade de intervenção endodôntica. Mas a realidade é que, infelizmente, a imensa maioria dos pacientes são submetidos a este tipo de procedimento sem todos os cuidados necessários – sem IA posicionado antes mesmo de iniciar-se a remoção de tecido cariado, sem remoção completa de cárie nas margens do preparo, sem refrigeração do alta e/ou do baixa rotação, sem emprego correto do sistema adesivo, entre outros.  Não vejo isso como culpa dos Endodontistas. É a experiência clínica que eles absorvem. É apenas o reflexo de inúmeras restaurações realizadas sob condições questionáveis.

Agora pergunto a você, leitor(a): você conseguiria assegurar a ausência completa de saliva e sangue nesta região caso este caso clínico estivesse sendo realizado sem IA? Você conseguiria ter tempo e tranquilidade para remover a quantidade correta de dentina cariada (no caso, a infectada)? Você conseguiria ver com clareza se foi feita remoção total de dentina cariada nas margens do preparo? Seus pacientes não se engasgam? Não têm ânsia repentina? Não têm vontade súbita de espirrar? Curiosidade inquietante, que leva a língua ao dente? Os meus, infelizmente, têm. Já ouvi colegas argumentarem que seus pacientes relatam desconforto durante o uso de IA. Imagino o que deve agradar estes pacientes: sentir o gosto de ácido fosfórico? Não conseguir relaxar por medo de encostar a língua ou a bochecha no local? Ter o receio de algum material cair na garganta? Ter 1Kg de roletes de algodão na boca? Ficar com o sugador atormentando a úvula? Um IA bem feito sobre região devidamente anestesiada e bem posicionado é confortável para o paciente, tranquilizando-o e trazendo segurança ao Cirurgião-Dentista. Se eu fosse falar de questões legais (obrigação de meio), o assunto se estenderia muito e perderia o objetivo do meu texto, que é a questão técnica do procedimento. Mas seria, sim, mais uma questão.

Figura 3

Passo agora para algo determinante no sucesso de qualquer procedimento restaurador: os procedimentos adesivos propriamente ditos. São vários os fatores que influenciam uma união efetiva entre o adesivo e o dente. Não é o foco deste texto, mas vão desde controle do tempo do ácido fosfórico e da umidade dentinária (variável de acordo com a técnica adesiva) até evaporar efetivamente o solvente do sistema adesivo. Tente imaginar o controle destes fatores (e muitos outros, inseridos entre eles) sob constante risco de contaminação. Em relação à inserção dos incrementos de resina composta, fica claro que a pressa atrapalha: é lógico concluir que um procedimento adesivo feito sob constante ameaça de contaminação tenderá a ser feito mais rapidamente. Na urgência de finalizar rapidamente o procedimento, acaba-se inserindo incrementos demasiadamente grandes de resina composta, prejudicando a passagem da luz às camadas mais profundas do material restaurador. Isso sem falar no pior controle da tensão de contração da resina composta. Como consequência, esta situação influi no esmero com a anatomia dental, algo que muitas vezes parece supérfluo, mas possui importância estética e funcional (Fig. 3).

É importante lembrar que todos estas considerações feitas até aqui incluem os procedimentos restauradores em Odontopediatria. As dificuldades em se conseguir um meio limpo e seco são muito maiores em crianças. O pensamento de que dentes decíduos precisam de restaurações mais simples é negligente. No quesito estético, provavelmente não será grande problema na maioria das situações. Porém, restaurar a forma, a função e a saúde na dentição decídua tornam-se fundamental em tantos aspectos para a saúde bucal da criança e para o impacto da dentição permanente que o tema mereceria texto próprio. Viu como os temas acabam se “conectando”? É tudo parte do mesmo procedimento!

Por fim, gostaria de expor algumas considerações sobre materiais. Por mais importante que seja a qualidade dos produtos e instrumentos utilizados (e sou entusiasta confesso de materiais de ponta), nada substitui:

1.    Diagnóstico correto.

2.    Escolha da técnica mais apropriada.

3.    Execução precisa da técnica escolhida.

É evidente que utilizar materiais da mais alta qualidade trará benefícios, isso é inquestionável. Porém, se este caso fosse realizado com adesivo e resina composta de baixa qualidade – mas com os mesmos cuidados com IA, remoção seletiva de tecido cariado, certamente teria um resultado a longo prazo superior quando comparado ao mesmo procedimento sendo feito com adesivo padrão ouro e resinas de ponta utilizados de forma errada.

Figura 4

Resumindo, entendo que os itens mais importantes em procedimentos como este são:

  • Remover corretamente (e não completamente) o tecido cariado, principalmente em cavidades profundas;
  • Promover hibridização efetiva;
  • Restaurar adequadamente a forma do dente, evitando excessos (como degraus interproximais) ou falta de material restaurador (Fig. 4);
  • Devolver a correta anatomia, por questões estéticas e funcionais;
  • Realizar boa fotopolimerização, acabamento e polimento final.

Depois de todo este texto, nos deparamos com as perguntas: o uso de IA aumenta ou diminui a possibilidade de se atingir com sucesso esses objetivos? Se você estivesse sentado na cadeira odontológica e precisasse de um procedimento como este, você gostaria que fosse realizado com IA ou isolamento relativo?

Ao término do procedimento, a paciente relatou grande satisfação. Disse jamais ter passado por um tratamento tão minucioso e que lhe passou tanta segurança. Isto certamente é um diferencial, inclusive na hora de passar os honorários. Para finalizar, gosto de lembrar que IA é uma coisa, colocar um lençol de borracha com grampo de qualquer maneira na boca do paciente é outra. É, no máximo, um isolamento relativamente absoluto. E como sempre: que prevaleça o bom senso, pois cada caso é um caso, inclusive este.

Alvaro Augusto Junqueira Júnior

CROSP- 105.542

Especialista, Mestre e Doutor em Dentística (FORP-USP)

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